PUBLISHED ON WWW.VIRGULA.UOL.COM.BR
“Feche os olhos como mulher, imagine o seu rosto cheio de pelos, seu corpo sem seios, e um pênis no meio das suas pernas”. É assim que a transexual feminina Rafelly Weist, 33 anos, se sente todos os dias, mas ela não precisa usar a imaginação, pois é a realidade com a qual se depara todos os dias diante do espelho. Rafaelly não “virou” transexual e jamais optaria por “sentir sofrimento”: a convicção de que não pertence ao corpo que tem nasceu com ela. Há 12 anos Rafaelly aguarda a cirurgia de mudança de sexo pelo Sistema Único de Saúde (SUS), procedimento ainda indisponível em Curitiba, onde vive.
Se ela se sente menos mulher? Não. As transexuais são obrigadas a aprender a viver com essa disparidade. Josiane Bougers, 35 anos, também de Curitiba, sofreu crise de identidade por anos, já se automutilou, porém nunca teve dúvidas sobre o gênero ao qual pertence. “Me sinto mulher todos os dias, aquela que levanta e faz várias coisas ao mesmo tempo, trabalha fora e cuida de casa”, disse. Os relacionamentos amorosos ficam comprometidos, confessou, e para superar ela acaba se concentrando em outras “partes da vida”.
Foi o que acabou acontecendo também com a pernambucana Robeyoncé de Lima, 27 anos, que não tem relações sexuais há quatro anos. “Eu transava tentando esconder minha genitália, não queria que meu parceiro visse meu pênis ereto. Quando eu sinto prazer, ele fica ereto, não tem como controlar, então comecei a fugir do sexo, sinto vergonha”, relatou. Robeyoncé é geógrafa e divide a rotina entre o trabalho e o curso universitário de Direito. Ela faz acompanhamento no Espaço Trans do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, no entanto ainda não tem previsão de quando fará a cirurgia.
“Sou mulher de peito e pênis”, disse Robeyoncé de Lima
A cirurgia para essas transexuais mudaria o modo como se relacionam com elas e com a sociedade. É claro que quando vestidas, conforme explicou Josiane, a genitália não é evidente, mas as pessoas ainda a veem conforme o sexo. “É preciso desapegar dessa relação de gênero ao corpo, de que para ser mulher tem que ter vagina. Temos mulheres de pênis e homens de vagina”, argumentou Robeyoncé. No Brasil, o preconceito é forte criticou Rafaelly, que convive com olhares como se fosse uma aberração. “É o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Só em janeiro, foram mais de 50”, disse.
Para Rafaelly, o preconceito também está presente na hora de conseguir direitos para os transexuais, como a cirurgia de mudança de sexo. “Quando a questão é transexualidade, a discussão é marginalizada ou se enquadra em estética. Se uma mulher que teve câncer de mama quer reconstruir o seio, é uma necessidade, se for uma transexual feminina, é safadeza”, comparou. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o transtorno de identidade sexual como doença, configuração que divide opiniões.
A cirurgia
O SUS realiza cirurgias de mudança de sexo desde 2008, porém o procedimento não está disponível em todo o país – apenas em Goiânia, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Recife – e existe uma longa fila de espera para conseguir a operação. O processo envolve o trabalho de uma equipe multidisciplinar que avalia a necessidade da cirurgia. Robeyoncé ainda deve passar por dois anos de avaliação, já que deu início ao tratamento em 2015. “A cirurgia é de acordo com a prioridade. Uma amiga minha não conseguia nem pegar no pênis para limpar, sofria muito e ficou com uma infecção séria. Ela, então, precisa mais”, contou.
Já nas cidades onde não há ambulatório especializado, a situação é mais complexa, explicou Rafaelly. Ela já passou pela avaliação e está esperando vaga para cirurgia em uma das unidades. “Quem não reside no local, entra com pedido de Tratamento Fora de Domicílio (TFD). Mas a prioridade é para os locais, então fico em uma fila de espera eterna”, explicou. A mudança para um dos municípios onde a cirurgia é disponibilizada pelo SUS acarretaria em abandonar família e trabalho por anos, acrescentou Josiane.
O custo total para fazer a cirurgia no sistema privado também não faz parte da realidade da maioria e soma cerca de R$ 45 mil, segundo Rafaelly. Mesmo fora do Brasil, ou em lugares referência em cirurgia de mudança de sexo como a Tailândia, o valor da conta final é alta. “Para quem ganha em dólar, operar na Tailândia é mais acessível, mas para nós é praticamente a mesma coisa e ainda tem o deslocamento até lá”, explicou. Para Rafaelly e Josiane a esperança de fazer a cirurgia é cada vez menor, já que não há previsão de quantos anos mais elas terão que esperar.