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Um Código com 71 anos de vigência, que tem idade equivalente à média da expectativa de vida do brasileiro. Artigos estabelecidos antes da Segunda Guerra Mundial, em 1939. É previsível e compreensível que o Código de Processo Penal esteja defasado. O cenário nacional, hoje, é completamente outro e, por isso, falhas graves são encontradas em meio aos mais de 800 artigos do Código. Segundo especialistas, o extremo da incongruência está nos artigos que determinam a imputabilidade do cidadão, do 26 ao 28. Eles apresentam brechas totalmente contraditórias ao serem aplicados na prática. Na inimputabilidade, é determinado que o cidadão totalmente incapaz de compreender sua ação, no momento do crime praticado, não deve cumprir pena, mas ser encaminhado a tratamento psiquiátrico, ou, no caso do menor de idade, à Fundação Casa. É na hora de classificar esse infrator que se escancaram as dissensões. Algumas delas chegam a deixar sujeitos impunes, por não haver determinação para o caso em questão.
A medida para o sujeito inimputável, determinada nos artigos citados, é equiparada a uma prisão perpétua. Segundo o advogado criminal Luiz Guilherme Vieira, o indivíduo permanece por tempo indeterminado em tratamento e passa por exames constantes para detectar a evolução do quadro psicológico. Este é um caso. Há também o inimputável por menoridade, como aconteceu no caso do assassino Champinha, como é conhecido, lembra o advogado. O menor matou um casal de namorados que acampava em Embu-Guaçu, no interior de São Paulo. “O indivíduo não é visto como criminoso, mas infrator”, diz Guilherme Vieira. Ele acrescenta que Champinha só não foi preso por ter sido considerado inimputável. Por isso ficou na Febem até a idade permitida, 21 anos.
De acordo com o laudo dos psiquiatras da casa, Champinha apresentava comportamento normal, no entanto, refeito o exame por psiquiatras forenses, foi constatada personalidade de alta periculosidade social. Aí surge a primeira divergência: O Código estabelece que o menor, após completar 21 anos, no caso, internado na Febem, está quite com a sociedade pelo crime cometido. Mesmo assim, o Ministério Público entrou com uma interdição civil e internou Champinha em uma casa para tratamento mental. O MP teve de usar a ação civil, pois não há medida estabelecida no Código Penal para ser aplicada na situação decorrente, já que a própria decisão feriu o estabelecido pelos artigos de inimputabilidade.
O presidente da Conamp, José Carlos Consenzo, lembra-se de um episódio em que, mais uma vez, não foi possível seguir o Código de Processo Penal. Trata-se do caso de “Chico Picadinho”. Em 1966, Chico matou e esquartejou uma bailarina, foi considerado imputável e condenado à prisão. Após cumprir pena de oito anos, ganhou liberdade por bom comportamento. Dois anos depois, matou e esquartejou uma prostituta. Desta vez, foi considerado semi-imputável, condenado e cumpriu pena de 32 anos. O tempo de detenção contrariou o limitado pelo Código, que é de 30 anos; o caso não acaba por aí. Após isso, o Ministério Público entrou com uma intervenção civil alegando que o criminoso era um psicopata, apresentava riscos à sociedade e, portanto, deveria ficar detido por tempo indeterminado. Consenzo ressalta que, mesmo depois de cumprir mais de 30 anos, a sentença de “Chico Picadinho” foi transformada em medida de segurança, ou seja, internação para tratamentos mentais.
É evidente a falha no que determina a imputabilidade ou não do criminoso: se foi detectado transtorno mental na segunda condenação, mesmo que fosse parcial, o sujeito deveria ser encaminhado para tratamento. “O psicopata é de semi-imputabilidade, ele compreende parcialmente o que cometeu”, diz o presidente. Numa definição explicativa, o advogado Luiz Guilherme Vieira afirma que o psicopata sabe o que fez, mas não vê problemas em sua ação, não tem discernimento. A vantagem desta classificação para o criminoso é que a semi-imputabilidade pode reduzir a pena.
Uma situação em que a medida norte-americana seria de bom senso é no caso do “Maníaco do Parque”,sugere o advogado. Para ele, o assassino é semi-imputável, apesar de não ter sido condenado como tal. “Ele estuprava, matava a vítima e no outro dia voltava para ter relações sexuais, isso não é ação de gente normal”, diz. Entretanto, a defesa do réu alegou que quando uma das vítimas informou ser portadora do HIV, ele não cometeu o estupro. Portanto, teria plena consciência de seus atos. “Ele foi condenado como assassino imputável e, em 15 anos, pode ser libertado”, relata o advogado. Eis um caso de incongruência da análise do Código de Processo Penal, reforça o advogado. Ou seja, um assassino com histórico de crimes brutais será libertado, por ter um momento de consciência durante as barbaridades que cometia. Caso fosse considerado inimputável, não haveria prazo para ser solto, ao contrário dos 30 anos determinados pela imputabilidade.
Mais um buraco no artigo de inimputabilidade está em relação a acusados que estavam sob efeito de remédios no momento do delito. Se provado que o medicamento alterou o discernimento do sujeito, ele é visto como consciente parcial dos seus atos. Ou pior. No caso relatado pelo ex-presidente do Conselho Nacional de Política, Sérgio Salomão Shecaira, o criminoso conseguiu provar que quando cometeu o delito estava em meio a um tratamento no qual ingeria remédios que causavam a perda de discernimento. Com isso, ele conseguiu deixar de ser imputável e alcançou a inimputabilidade. De acordo com o Código, ele deveria ser encaminhado ao tratamento psiquiátrico, porém, quando parou de tomar os remédios, os sintomas desapareceram. Resultado: Ficou impune.
No caso da embriaguez, Shecaira confirma a imputabilidade, já que a ingestão foi voluntária. Porém, ao se tratar de alcoolismo ou vício em drogas, Consenzo e Shecaira afirmam que existe a chance de a pessoa ser considerada inimputável. Neste caso, ela é encaminhada à medida de segurança, para tratamento. Não foi o que aconteceu em um dos casos defendidos pelo advogado Fábio Tofic. Seu cliente era viciado em crack há dez anos, foi acusado de três roubos, nos quais foi rendido pelas próprias vítimas. Apesar das provas de diversas internações para tratamento do vício, foi julgado como imputável. “O assalto foi desarmado e o garoto não possuía qualquer histórico ligado ao crime”, lembra.
A discussão sobre quem é ou não inimputável segue adiante e esbarra em mais uma lacuna: crimes cometidos em momentos de surto neurótico. “Estes são difíceis de se avaliar”, diz Tofic. Ele explica que o importante é a capacidade de discernimento do indivíduo no momento do crime, se ele não estava consciente, por um surto isolado, é visto como inimputável. Todavia, não faz sentido ser encaminhado para tratamento psicológico, já que não possui qualquer transtorno mental. “A pessoa fica impune”, conclui. Assim funciona no Brasil. Já nos Estados Unidos, o advogado criminalista Tiago Gomes Anastácio afirma que, para estes casos existe a legaly insane: “O indivíduo é considerado inocente por ter sido levado a alto estresse psicológico quando cometeu crime”. Aplica-se a um caso isolado. É o caso da mulher que esfaqueou um homem, dentro da delegacia, e foi absolvida duas vezes. Ela entrou no local e deu de cara com o homem que havia estuprado seu filho, quando caçoou dela, ela o esfaqueou. De acordo com o advogado Tiago Gomes Anastácio, a atitude foi considerada instintiva e de defesa. O assassinato ficou impune, baseado no surto isolado da autora.
No entanto, não são todos os casos avaliados desta forma. Mateus da Costa Meira, que entrou em um cinema, atirou nas pessoas e teve julgamento divergente. Ele era estudante de medicina, não possuía qualquer histórico criminal, mesmo assim, foi considerado imputável. Os advogados do estudante alegaram, em vão, que sua atitude foi um surto influenciado por um jogo. “Tem advogado que pede inimputabilidade, torcendo pela semi-imputabilidade”, segundo o ex-Procurador-Geral de Justiça Rodrigo Pinho. O objetivo é de obter a redução de pena. Para ele, ser encaminhado a um “manicômio” é pior do que qualquer prisão. “O pior lugar que eu já estive é o Centro de Custódia Franco da Rocha”, lembra-se que é um silêncio artificial, como se todos estivessem dopados e aponta a ineficácia dos tratamentos.
No Centro de Custódia são feitos exames, regularmente, para avaliar a recuperação de sanidade do indivíduo. No entanto, a falta de qualidade se equipara à perícia que determina a inimputabilidade do sujeito, antes do julgamento. Tantas vezes duvidosa. Tanto é que, para Shecaira, uma boa instrução do advogado pode fazer com que o acusado se comporte de forma a ser diagnosticado algum distúrbio mental. “As perícias médicas são feitas em dez minutos”, diz Tiago Gomes Anastácio. O que deveria ser uma filmagem é apenas uma fotografia, não existe um acompanhamento para a análise do estado mental do acusado.
O outro lado: A imputabilidade
Ao mesmo tempo, o Código esbarra no limite máximo de 30 anos para a detenção do criminoso, o imputável, independente do crime cometido. Mesmo diante a uma condenação de 100 anos de prisão, o cumprimento será de no máximo 30. Esteja a pessoa reformada ou não, ela deve ser solta como estabelece o Código de Processo Penal. Segundo o diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Fábio Tofic, após os 30 anos, o sujeito está quite com a sociedade. “Mantê-lo preso pela suposição do que ele pode cometer no futuro, seria como aplicar conceitos do Regime Nazista”, afirma. Ele explica que no Brasil a condenação é baseada nos fatos passados e não nas possibilidades e no achismo, por isso, depois do limite determinado no Código, o criminoso está livre. A única forma de mantê-lo retido é o diagnóstico de algum transtorno mental.
O que explica Shecaira é que: “Há casos de a pessoa imputável adquirir transtorno mental ao longo da pena e tornar-se inimputável”. Suzane Richthofen, exemplifica Shecaira, é considerada totalmente imputável, no entanto, seu pedido de progressão para o regime semiaberto foi indeferido, justificado por ela ainda não estar apta ao convívio social. Caso a Suzane cumpra os 30 anos de pena, mesmo se for considerada ainda inapta à ressocialização, terá de ser solta. Como imputável e consciente de seus atos, ela não pode ser encaminha a um manicômio. José Carlos Consenzo acrescenta: “ um dia a mais e o Estado pratica uma ilegalidade”.
Foi o caso do “Bandido da Luz Vermelha” que, acusado de diversos crimes, cumpriu pena por 30 anos. Ao final do período, mesmo com os questionamentos sobre sua periculosidade à sociedade, teve que ser solto. Meses depois, o criminoso se envolveu em uma briga e foi morto. Com base no caso, José Carlos Consenzo justifica sua discordância com tal limite. Ele afirma, que a pena prevê a recuperação do cidadão pelo Estado para o convívio social, o que, evidentemente, não aconteceu no caso. “A pena é preventiva — para as pessoas saberem que a prática de um crime gera punição — e retributiva — se alguém tira a vida de uma pessoa, o Estado tira sua liberdade”.
Segundo Consenzo, é fundamental a revisão do limite de tempo de prisão, pelo legislador. “O limite de 30 anos foi estipulado com base na expectativa de vida, na época, entre 55 e 60 anos”, argumenta, Hoje a média do brasileiro chega até 75 e 80. “O limite teria que ser, pelo menos, de 40 anos, então”. Consenzo esclarece que a intenção da pena é de ressocializar a pessoa, no entanto, com a detenção, você previne outras pessoas de cometerem tal crime e retribui o mal que o criminoso causou. “Eu sou contra qualquer direito aos casos de crimes hediondos.” Inclusive, se declarou contra a progressão de regime para atos de tal gravidade. Apesar das justificativas do Consenzo, o advogado Odel Antun afirma, baseado em estudos, que a ressocialização só acontece se for de forma gradual, portanto, a progressão de regime contribui para isso.
Sistema Penitenciário
Para o professor de direito da UNB, Carlos Pelegrino, o Código de Processo Penal está ultrapassado. Na opinião do professor, se a pessoa for condenada a 70 anos de prisão, deve cumprir todos os anos da pena, assim como a idade mínima para a condenação deveria cair. “O moleque de 16, 17 anos vai lá e comete um crime, ele deveria ser condenado como responsável total por isso”, segundo ele, esse benefício ainda faz com que os menores assumam infrações dos que já estão na maioridade.
Carlos Pelegrino explica que a pena máxima de 30 anos e 18 anos ser a idade mínima para a imputabilidade no Brasil correspondem ao grau de evolução da própria sociedade. Revela que existe uma pressão política para que o Código não seja revisto, “Com medo de perder votos, os políticos barram essas mudanças”. Há também a desvalorização da Polícia Científica, de acordo com o criminalista Tiago Anástacio, não existe uma equipe de investigação ativa. “Os Estados Unidos e Inglaterra acreditam que se não desvendado autoria e motivo do crime em até 48 horas, o erro judicial é muito provável. Aqui no Brasil levamos de um a dois anos”, afirma. Dentre outras falhas, em sua opinião, está a persuasão nos laudos psiquiátricos pelos juízes e partes envolvidas, a politização dos tribunais e a visão do sistema penitenciário focada em quantidade e não na qualidade.
** CONJUR