PUBLISHED ON WWW.OESTADORJ.COM.BR
Aos 35 anos, MV Bill passa mensagem sobre o tráfico, mídia, política, polícia e olimpíadas de 2016
Às 9 horas da noite da véspera do Dia Internacional dos Direitos Humanos, no teatro escuro Paulo Autran, repleto de fãs curiosos a esticar o pescoço em busca do oculto pelo breu da parte de trás do palco. Surge o Mensageiro da Verdade em ginga ritmada, aplaudido em pé. Calças largas, camisa clara e, em homenagem a um dos maiores sambistas, os traços pretos da estampa se unem para formar a feição peculiar do rosto magro de Cartola.
Microfone escondido pela mão direita, enquanto os pés firmes acompanham o ritmo do outro braço que vai de um lado a outro junto à batida da música “O Bonde não para”. Ao seu lado, a irmã Camila dá movimento ao cabelo cacheado numa dança ao som do trecho “sarará crioulo”, improvisado pelo rapper no meio da música. “O bonde não para, o bonde não para, só quem tá formado no bonde que mostra a cara” e os dois irmãos se entusiasmam em marcha de um lado a outro do palco, a plateia se excita. “Numa noite como esta é importante a gente estar junto e misturado em prol de projetos que podem ajudar um monte de gente”, surge a voz grave de MV Bill numa pausa entre suas rimas, sobre o Fundo Brasil de Direitos Humanos o qual ele integra o Conselho há mais de três anos e foi convidado para fazer o show de lançamento do edital de 2010.
O baterista faz os irmãos dançarem conforme seu ritmo, os violonistas ora ou outra fecham os olhos e passam a varinha sobre as cordas do violino, um som agudo invade os ouvidos e logo entram os metais que combinam os sons do trombone, saxofone e trompete reluzindo o brilho dourado de seus instrumentos. Uma batida dá espaço ao silêncio e arranca o sorriso simpático do coordenador da Central Única da Favela (CUFA), na Cidade de Deus, aos aplausos cabais.
Bill faz uma pausa e declara em tom pleno de confiança a importância de pequenas atitudes para impetrar grandes escopos e lembra uma das principais causas de sua luta, o preconceito racial sofrido pelo negro. Como um protesto, acusa o racismo presente no Brasil como o mais cruel já que é camuflado pelo mito da democracia racial. “No mês de novembro você vê tudo de preto, programa de auditório coloca plateia afrodescendente, acho legal lembrar isso depois, porque parece que passa novembro e a gente vira tudo europeu”, ecoa a voz grave no microfone.
“Somos 365 dias afrodescendentes”, diz Bill enquanto caminha em direção às cadeiras de couro atentas às suas palavras de protesto social, segundos antes de iniciar as rimas que compõem “Soldado do Morro”, cujo clipe foi acusado de apologia ao crime organizado pelas imagens explícitas da realidade da periferia.
Aproveitando a deixa da música, MV Bill entra no assunto da falta de espaço para o Hip Hop nacional, em tom incrédulo deixa as palavras soarem no microfone em revelação dos dizeres de radialistas sobre a preferência de tocar o Hip Hop internacional, pois as pessoas não compreendem a letra. Logo citou os canais Multishow e MixTV, que o apoiaram em um projeto da CUFA, no entanto, ambos não transmitem clipes de Hip Hop nacional. “Fui na MixTV a primeira vez e disse ‘Alô rapaziada, aqui é o MV Bill, estou na Mix TV’, achei que fosse entrar um clipe meu na sequência, entrou o do 50 Cents”. Na segunda vez em que esteve no canal, os fatos transcorreram quase da mesma forma, com exceção do clipe do 50 Cents substituído por um do Ja Rule.
A despedida para alguns aconteceu nas últimas rimas de “Ninguém pode me julgar”, mas não para Bill que vinte minutos depois estava acomodado em um banco para a entrevista. Gentil e interessado, mantinha os olhos fixos enquanto ouvia a pergunta que lhe era feita.
Mensageiro da CDD
Alguns segundos para refletir e o Mensageiro resgata na memória motivos que lhe fizeram optar pelo caminho contrário dos demais jovens com a sua idade na década de 90. Como um estalo lhe veio à mente as mortes presenciadas e os amigos perdidos ao longo do caminho. Na verdade, sua busca não foi a um passado tão distante, chegou a uma conversa transcorrida na semana anterior. “Estava dando um passeio lá na Cidade de Deus, estava o Fab Five Freddy, um dos precursores do Hip Hop internacional, estava o Mano Brown, sentamos para trocar uma ideia e a gente começou a puxar os amigos de infância, comecei a tentar lembrar dos meus e vi que muitos eu perdi no crime, na violência , alguns foram presos…”
Numa época em que houve o aumento populacional de quase 70% da periferia e para 160 bairros formais havia 741 favelas no Rio de Janeiro, ao Bill se deparar com uma regra que não o favorecia: “Eu decidi ser uma exceção”.
A partir desta determinação, passou a se informar, ler mais para ampliar seu vocabulário para saber falar o “favelês” dentro da comunidade e o português fora dela. Como militante da área social foi um dos fundadores da CUFA em 1998 e hoje se orgulha em citar, em palavras carinhosas e detalhistas, projetos como o curso de audiovisual oferecido na Central Única das Favelas. “A gente pega a câmera, dá na mão do jovem e ensina ele a fazer um filme, ele deixa de ser o rato de laboratório para teses de mestrado e passa a contar sua própria história”, diz Bill sorrindo pelo significado de tal conquista.
O relógio, em ritmo acelerado, coloca seus ponteiros já próximos à madrugada, quando o homem que “fala por milhões e é compreendido por menos de cem” inicia a discorrer sobre a importância da preparação do povo brasileiro para sediar as olímpiadas, cita as estruturas, a orientação das autoridades sobre a possível vinda dos europeus visando o turismo sexual e, principalmente, acredita na necessidade da prática de políticas públicas na comunidade. Para ele, o vídeo exibido sobre a cidade carioca é um postal para conquistar a oportunidade de sediar os jogos, todavia, a olho nu a realidade é o avesso deste postal.
“Gostei dos fogos que soltaram na gringa, dos que soltaram aqui, da festa na praia de Copacabana, mas seu eu fosse governador ou prefeito estaria trabalhando no outro dia para preparar a cidade”.
O projeto de pacificação das favelas do Rio, por exemplo, ainda está restrito a poucas comunidades, para o Mensageiro da Verdade, a intenção é boa, mas de eficácia duvidosa pois falta a ação das Secretarias como a da Educação, a da Saúde e outras. “Eu acho que a Secretaria da Ação Social deveria estar junto com a polícia no momento da invasão para dizer ‘ei, não comete excesso’, ‘revista o homem direito porque ele é trabalhador’, não pode entrar sem mandado’”. As palavras de Bill chegam carregadas de realidade ao gravador colocado próximo ao seu rosto, os frisos de sua testa precedem as lembranças de quando ocorreu a ocupação pacífica da polícia na Cidade de Deus. Não era comum, os PMs sempre subiam e desciam o morro, quando permaneceram, MV Bill conta que um clima hostil se instalou.
Passado quatro meses a tensão diminuiu, os policiais permanentes passaram a reconhecer as pessoas da comunidade. “Começaram a entender que o seu Antônio fica ali na frente porque ele é aposentado, o Rogério é desempregado e a Roberta trabalha à noite”, narra. Com uma feição mais carregada, começa a expor como contraponto da situação a falta de efetivo para a ocupação e, por isso, o recrutamento de policiais jovens e despreparados. “Aí, tem policial que curte funk, gosta de beber uma cerveja, policial que vai no pagode, que fuma um baseado, policial que gosta de cheirar um negócio”.
Em tom sério abastado de gravidade, Bill relata casos de policiais que cometem excesso de autoridade, agressões, humilhação com o revólver apontado para o rosto de moradores e desrespeito com a namorada dos homens da comunidade. “Quando a gente tem a polícia como único braço governamental dentro da favela, a gente está muito mais próximo de uma tragédia do que de uma solução ou transformação”. Contudo, a política não faz parte de seus planos. Apesar da indicação de seu nome ao Senado, por Caetano Veloso, o rapper considera necessário extrema dedicação para a candidatura, portanto, é inadequada quando se tem de conciliá-la com shows e música.
O rapero, porém, define o Senado em uma só palavra: antigo. Segundo ele, no pior sentido existente do vocábulo que mistura idade com conservadorismo e mercenarismo. “É preciso uma renovação, eu acho que tem que ter candidatos que represente a periferia, o preto, o skatista, o homossexual, isso ia dar um sentido de mais representatividade ao Senado”. Cordialmente, MV Bill, o Mensageiro da Verdade, se despede e agradece enquanto a escuridão cobre parte de seu corpo entre as cortinas da coxia do teatro. O relógio já aponta para o Dia Internacional dos Direitos Humanos, ao fim da entrevista com o rapper dono das rimas em prol da maioria excluída.
Maravilhosa a matéria Thá. Digna do seu talento!