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Silenciosa, a “guerra religiosa” no Brasil não é recente. Não existe troca de bombas ou assassinatos – como no Oriente Médio -, mas a disputa pelo controle de fieis e poder do Estado é real. Deus tem sido o principal cabo eleitoral no Brasil, desde o Regime Militar – a igreja apoiou o golpe de 1964, com medo de um Brasil comunista. A entidade divina ainda apareceu na campanha do ex-presidente Fernando Collor, em 1990; de Fernando Henrique Cardoso, em 1994; Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002; e agora é assunto na corrida eleitoral do candidato à prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno (PRB), apoiado pela pentecostal Universal do Reino de Deus.
A igreja católica, que no passado atuava como suprema – no âmbito religioso e político – perdeu fieis e também influência no Estado, já na década de 1980 com o surgimento do pentecostalismo no Brasil. Segundo informações do IBGE, o catolicismo detinha mais de 90% de seguidores na década de 1970, em 2010 registrou 64,6% da população. Por outro lado, em 1980 6,6% dos brasileiros eram evangélicos; em 2010, o número saltou para 22%, sendo que 60% pentecostais. “As igrejas sempre tiveram participação na política, esta prática é secular. No começo, a igreja católica, depois as outras igrejas tiveram interesse. Desde 1980, os pentecostais têm se organizado para atuação na politica, mas agora têm mais visibilidade, têm a mídia nas mãos”, analisou o sociólogo Edin Sued Abumansur.
Este ano, o candidato líder nas pesquisas de intenção de voto para a prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno, apesar de católico, é do partido PRB, pertencente à Igreja Universal, em que o presidente é o bispo Marco Pereira. A fé dos fieis já foi usada na campanha, quando um pastor pediu votos em Russomanno e até em confusão com a igreja católica o partido se envolveu, após o resgate de um post no blog de Pereira que fazia críticas à instituição católica e incitou manifestações duras sobre a possibilidade do braço pentecostal tomar a liderança do governo paulistano.
Para o pastor e professor de teologia do Instituto Teológico Gamaliel, Flávio Nunes, “nos momentos eleitorais a questão da religião aflora, políticos usam disso para ganhar votos, mas hoje as pessoas são capazes de emitir opinião, independentemente do que o líder religioso aponta”. Nunes acredita que o candidato esteja fazendo a parte dele, “quando pega pastor, padre e artista para atrair votos”. Porém, considera que o ministro religioso que se presta a essa ação, faz um “desserviço para a religião, que sofre um desvio de função. O pastor é instrumento para atrair as pessoas a Deus e não a candidatos”, criticou, apesar de confirmar que não existe determinação que proíba pastores e bispos de “pedir votos”.
Mesmo com a especulação de que Russomanno esteja à frente na corrida eleitoral paulistana por ter ligação com a Universal, o sociólogo Ricardo Mariano acredita que os fieis não são tão representativos em número de votos em um primeiro turno numa eleição majoritária. “O voto evangélico pode ser fundamental em um segundo turno. Quando existe uma disputa muito acirrada e se um dos candidatos tem uma rejeição grande dentro de um grupo religioso, o pleito pode ser decidido pelo voto evangélico”, comparou. Por este motivo, os concorrentes sempre buscam se aliar às religiões, o que “levanta a questão de até quando esta relação não ferirá a democracia”. É esta a preocupação do diretor da Faculdade de Teologia da PUC-SP e padre, Valeriano dos Santos Costa. “Temo que essa mistura construa uma sociedade onde a religião e o poder sejam tão intrincados, o que a gente vê em todo o mundo muçulmano, em que não há separação”.
Segundo Abumansur, o apoio da religião a um candidato pode não elegê-lo ou aumentar o número de fieis. Mas no caso de Russomanno, por exemplo, “as pentecostais vão cobrar essa fatura de outro jeito, pedir mais liberdade, possibilidades de ação e cargos políticos, o que aumenta o poder da igreja”, explicou. Na corrida paulistana, o entanto, não é apenas o candidato do PRB que usa Deus como cabo eleitoral. O tucano José Serra tem apoio de pelo menos duas igrejas neopentecostais e do padre Marcelo Rossi. Já Gabriel Chalita (PMDB) conseguiu apoio da maior denominação evangélica do País, a Assembleia de Deus.
O voto “divino”: desde a redemocratização
Também autor do livro Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil, Mariano lembra que a religião esteve na política desde o descobrimento do Brasil, na época da colonização. Até o final do século 19, Estado e igreja caminharam juntos, só com a instalação da República é que acontece a separação, contextualizou. Em 1964, em meio à ameaça de um Brasil comunista, a igreja chegou a apoiar e golpe militar. “A igreja sempre se opôs ao comunismo, por causa da perseguição religiosa”, explicou. Até meados dos anos 1980, as pentecostais conservavam distância do Estado: “crente não de mete em política”, disse ele sobre a crença da época. Mas em 1986, o cenário mudou.
As pentecostais passaram a divulgar um boato de que a igreja católica tentaria reaver privilégios com o governo, para voltar a dominar, e mergulhou na política. “De 1910 a 1982 so tinham elegido cinco parlamentares. Em 1986 elegeram 18”, afirmou Mariano. Em 1989, nas eleições presidenciais, o ex-presidente Fernando Collor teve apoio majoritário das pentecostais. “Surgiu um novo boato de que o PT, por representar o comunismo e catolicismo, iria perseguir os evangélicos, transformar igrejas em armazéns. Associavam o governo petista como totalitário, mencionavam o caso cubano. A igreja Universal demonizava sistematicamente o Lula e fez campanha para o Collor”, relatou Mariano. O medo de Lula assumir atingiu empresários e a classe média. Fernando Collor foi eleito e assumiu em 1990.
Nas eleições presidenciais de 1994 e 1998, de acordo com o sociólogo, o processo de “demonização do petista” continuou e o apoio foi a Fernando Henrique Cardoso. Ele ficou oito anos no poder, mas a relação foi desgastada após a aplicação de uma multa da Receita Federal à Igreja Universal. Em 2002, surgiu a chance de colocar um membro evangélico no poder do Brasil, com Anthony Garotinho (PR). O sonho teve fim no segundo turno, disputado pelo petista Lula e o tucano Serra. Contrariando quase 20 anos de posicionamento, a Igreja Universal decidiu apoiar Lula. “O líder da Universal na época era o bispo Carlos Rodrigues, que foi acusado pelo relator do mensalão. Ele controlava o lançamento politico na igreja, alguns anos antes, já tinha feito aproximação com o PT. Hoje, PT Lula e Universal mantêm uma aliança há 10 anos”, disse Mariano. Em 2006, Lula foi reeleito.
Em 2010, o apoio da igreja evangélica ao PT ficou explícito. O PRB oficializou apoio à candidata Dilma Rousseff, fez discurso a mais de 700 membros da igreja Universal quando disse ser da turma deles e foi defendida de ataques por Edir Macedo publicamente. “A Dilma assumiu compromissos explícitos com os evangélicos no segundo turno em 2010”, comentou Mariano. Do outro lado, José Serra foi apoiado pelo padre Marcelo Rossi e teve apoio do bispo de Guarulhos, Dom Luiz Gonzaga Bergozini que pediu aos católicos para não votarem na petista. Este ano, a igreja Universal decidiu lançar um candidato próprio à prefeitura da cidade com o maior PIB do Brasil, e não apoiar o petista Fernando Haddad.
Cristianismo: pacote de promessas
Ter saúde, enriquecer, alcançar os objetivos ou ter um lugar garantido no céu. A religião evangélica, assim como a católica são originadas do Cristianismo, no entanto, interpretam a bíblia de formas diferentes e oferecem aos seus discípulos diversas conquistas. É a proposta por um futuro melhor que atrai religiosos às igrejas. Para o teólogo e padre Valeriano dos Santos Costa, “o aumento no número de evangélicos se deve pela liberdade e diversidade da religião e uma pregação muito forte de prosperidade, que não é o núcleo central do evangelho de cristo, que é a salvação”, justificou.
O teólogo e pastor Flávio Nunes admitiu que “a igreja evangélica tem algumas ramificações que têm explorado a prosperidade, que isso não tem feito bem à igreja como um todo e que a maioria não pensa assim”. Segundo ele, a crença é de que Deus abençoa os fieis e os faz prosperar, de acordo com o quanto ele se doa. Mas, para Nunes, a verdadeira razão para o convertimento de evangélicos é o aumento no índice de alfabetização: “Antes, só quem podia ler a palavra de Deus era padre. Fazia a leitura em latim de costas para as pessoas e elas tinham que confiar no que ele dizia, agora têm acesso à bíblia”, justificou.
Enquanto o catolicismo tem uma doutrina de mais de 2 mil anos se preocupa em salvaguardar essa doutrina, a igreja evangélica é mais solta e liberal. Apesar de concordarem com a existência de uma briga pela conquista de fieis entre católicos e evangélicos, os teólogos avaliam como uma disputa “pacífica” e dentro do que é “aceitável”.