Morador de rua, poeta, escritor, artista e ouvinte. Os adjetivos dados pelos conhecidos e amigos a Raimundo Arruda Sobrinho, 73 anos, formam uma lista extensa. Ele, que vivia no canteiro central da avenida Pedroso de Morais escrevendo textos e poesias, há cerca de 20 anos, segundo os moradores da região, deixou o local no dia 23 de abril. Após negar o convite para morar com a família, Arruda foi removido da rua por uma equipe da prefeitura de São Paulo e levado ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do Itaim Bibi, que abriga pacientes psiquiátricos graves. Segundo informações do Caps, ele continua a escrever.
Há mais de 30 anos, o lar de Arruda não tem paredes ou telhado. No último lugar onde morou antes de ser internado, o chão era feito de grama; o telhado, de galhos e folhas de uma árvore pequena; e contra o frio e a chuva ele contava apenas com papelão e sacos de lixo. Com vista para a praça Ernani Braga e a poucos metros de um pé de manga, Arruda passava dia e noite escrevendo textos ali.
Longe da “Ilha Pedroso de Morais”, como ele chama o local onde vivia, Arruda mantém as barbas e cabelos compridos, ainda não concordou em tomar banho e passa por tratamentos psiquiátrico. “Ele está comendo direitinho, recebendo atendimento, tem um quarto só para ele com todos os escritos. Até a estaca de madeira onde ele apoiava um plástico e entrava embaixo quando chovia a gente levou para o quarto dele no Caps”, contou Shalla Monteiro, moradora de Pinheiros que um dia se interessou pelo homem que escrevia no canteiro central da Pedroso de Morais.
“Qual é o interesse do leitor pela vida do autor que ele leu e os demais consumidores por tudo aquilo que o homem não fez”, foram as primeiras palavras que o escritor entregou a ela há um ano. Depois disso, eles criaram uma amizade. Shalla participou de todo o processo de remoção e visita cerca de três vezes por semana o amigo internado. Segundo ela, ainda não existe um diagnóstico sobre Arruda, mas ele vive em um mundo próprio. Procurado pelo Terra, o Caps não forneceu informações sobre o paciente, tampouco autorizou visita da reportagem.
“Ele não saía de lá (canteiro central da Pedroso de Morais) para lugar algum. À noite, quando cheguei, ele não estava mais lá. A gente sente falta, né?”, disse o segurança de rua Nilton Batista. Trabalhador na região há sete anos, era com Arruda com quem ele passava as madrugadas de plantão. “Eu ficava lá até 2h e ele ficava escrevendo, a gente conversava sobre a vida dele, eu perguntava da família e ele sempre dizia que não tinha e que gostava de viver sozinho”, contou Batista.
“O que mais me surpreendia era a resistência dele. Ficava ali no sol, na chuva, apenas com sacos e mais nada”, lembrou o policial militar Emanuel Soares Santana, que há 20 anos faz o policiamento local. Santana já leu alguns escritos de Arruda, mas o que mais o marcou foi uma entrevista: “ele disse que era excluído, não fazia parte da sociedade, que não era sociedade”, lembrou.
Reencontro com a família
Raimundo Arruda Sobrinho tem três irmãos, dois que vivem em Goiás e um no Mato Grosso. Durante os anos em que ele passou na rua, dizia ser sozinho, mas tudo mudou quando Shalla criou uma página no Facebook para divulgar os escritos do morador de rua, em agosto de 2011. “Eu prometi a ele que publicaria os trabalhos, nem que fosse na internet, então criei uma página para ele”, contou. A surpresa veio quando um homem entrou em contato se dizendo irmão de Arruda, cerca de três semanas depois, segundo ela.
Shalla mostrou fotos dos familiares ao amigo, que confirmou o parentesco. “Os irmãos vieram para cá, para levar o Raimundo de volta para Goiás, mas ele não quis. Disse que não queria dar trabalho e que não tinha condições de viver em um ambiente familiar. Então a família e eu pensamos em primeiro tratá-lo em um local mais próximo, sem precisar se distanciar tanto de onde ele vivia, para depois tentar convencê-lo a morar com a família”, explicou Shalla, que mantém contato com os irmãos de Arruda.
O Condicionado
Nascido em Piacá, no norte de Goiás – hoje Goiatins, no norte de Tocantins, Arruda vive em São Paulo desde 1961. Passou um tempo como vendedor de livros e, mesmo depois de ter que morar na rua, não deixou a paixão pelas letras de lado. São os livros, escritos em recortes de sulfite e papelão a fonte de sobrevivência de O Condicionado, pseudônimo que adquiriu para suas obras. Ele entregava os escritos para as pessoas que se propunham a ajudá-lo.
“Uma vez ele parou de escrever, eu perguntei o motivo e ele disse que a caneta tinha acabado, aí entreguei duas para ele. Fiquei de levar o caderno, mas não deu nem tempo, ele foi embora. Pensei que tinha morrido”, lembrou Batista, aliviado por saber que o amigo está bem. Arruda já entregou vários escritos para o segurança como presente, mas ele não soube dizer de que se tratavam. “A letra dele é um pouco difícil e minha leitura não é muito boa”, justificou.
Apesar de viver em condições precárias, Arruda não aceitava esmolas. “Em 1978, conheci o Raimundo. Ele não pedia nada, nem dinheiro. Chegava com o dinheiro dele e pagava as coisas”, contou o segurança de uma residência da região, Vicente Queiroz. Segundo o segurança, Arruda preparava sua própria comida e comprava mantimentos.
O segurança Antônio Floriano Peixoto Filho, que toma conta de uma padaria da região, confirmou a autossuficiência de Arruda: “ele vinha aqui comprar café (R$ 2,80) e pão com manteiga (R$ 2,50)”. Peixoto conheceu Arruda há cinco anos. “Ele veio, já conversou comigo, era bem humorado, brincava, sorria, era muito querido aqui. Tanto que quando ele sumiu, todo mundo ficou preocupado”, contou. Até um médico, cliente da padaria, costumava visitar Arruda no canteiro da Pedroso de Morais, segundo o segurança.
Futuro livro
O objetivo de Shalla e da família é publicar os versos escritos durante todos esses anos vivendo na rua. “Ele sempre coloca o cabeçalho: ‘Ofertas gestos páginas autografadas’. Depois vem o título e verso. Atrás ele coloca a data: 1999 + 13, ele não escreve 2000, coloca 1999 mais o número que somando chega no ano que estamos”, contou Shalla. A explicação seria que, para ele, depois de 1999 nada mais é real.
“Ele chama os textos de minipáginas, corta o papel sempre no mesmo formato e escreve”. Segundo ela, Arruda tem uma pilha de escritos e todos são valiosos. “Ele tem uma sensibilidade e um conteúdo, é muito inteligente”, disse. Não existe ainda previsão para a publicação das obras, já que no momento a preocupação principal é o cuidado com Arruda. Shalla espera que as pessoas integrantes da página feita em homenagem a ele no Facebook possam ajudar a encontrar uma forma para a divulgação do trabalho.
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